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Acidentes causados por abelhas

Paula Bretas Ullmann Fernandes

Médica Veterinária, Mestranda do Curso de Ciência Animal da UFMG


As abelhas da espécie Apis mellifera são utilizadas atualmente para produção de mel, própolis, pólen, geleia real, polinização de plantas frutíferas cultivadas, entre outras funções, possuindo, portanto, grande importância socioeconômica [5]. O início da criação de abelhas melíferas no Brasil data do século XIX, ainda no período colonial, quando foram introduzidos espécimes de origem europeia (Apis mellifera mellifera). Já na década de 1950, abelhas melíferas africanas (Apis mellifera scutellata) foram trazidas para o país com o intuito de promover programa de melhoramento genético, uma vez que essas abelhas, apesar de mais agressivas, eram capazes de produzir maior quantidade de mel que as européias. Porém, houve a ocorrência de cruzamentos acidentais entre as duas espécies, resultando em uma espécie híbrida que está dispersa por todo o continente americano e caracteriza-se por um marcante comportamento defensivo e agressivo, com ataques em massa [1, 2, 3, 4].

Abelhas possuem um órgão inoculador de veneno, o ferrão, que contém glândulas veneníferas anexas. Este é uma modificação do aparelho ovopositor, e está presente apenas nas fêmeas [5, 6]. A peçonha é injetada no momento da ferroada e permanece sendo liberada gradualmente no local da picada, enquanto o ferrão está preso na vítima.4

O veneno das abelhas híbridas africanizadas é composto por complexa mistura de enzimas, lipídios, aminoácidos, carboidratos e peptídeos, como a apamina e a melitina. A concentração destes é influenciada diretamente pela idade da abelha [1, 5]. Os principais componentes da peçonha das abelhas e sua ação são:

  • Melitina: peptídeo que abrange 40 a 60% do peso seco. Promove bloqueio neuromuscular, paralisia neuromuscular e danos mitocondriais e da membrana de diversos tipos celulares. A lise celular em consequência pode liberar ácido araquidônico.

  • Apamina: peptídeo que afeta o sistema nervoso central e periférico, causando ativação de receptores muscarínicos e bloqueio de canais de potássio ativados por cálcio, com consequente diminuição do tônus inibitório e maior propensão ao desenvolvimento de quadros excitatórios envolvendo espasmos musculares, hiperatividade e convulsões.

  • Fosfolipase A2 e Hialuronidase: ambos, juntamente à melitina, são considerados a principal causa das reações anafiláticas, possuem atividade pró-inflamatória e propriedades cardiotóxicas, que podem causar arritmias cardíacas. A Fosfolipase A2 atua de forma sinérgica à melitina, sendo capaz de causar lise celular. Já a hialuronidase hidrolisa o ácido hialurônico, gerando a difusão do veneno pelos tecidos.

  • Peptídeo Degranulador de Mastócitos: age diretamente sobre os mastócitos, causando a liberação de aminas vasoativas, como a histamina.

  • Outros componentes sem importância toxicológica: peptídeos sercapina, tertiapina e procamina, e aminas biogênicas histamina, serotonina, noradrenalina, dopamina [1, 4, 5].

Acidentes por picadas de abelhas costumam ocorrer com certa periodicidade, apesar de existirem relativamente poucos casos relatados na literatura. Em pequenos animais, existe maior frequência de acidentes envolvendo cães do que gatos. Isso acontece devido ao comportamento curioso da espécie e aos latidos, que contribuem para instigar o temperamento agressivo das abelhas. Observa-se também, que animais de pelagem clara costumam receber menor número de ferroadas que os de pelagem escura em casos de ataque [1, 6]. O diagnóstico geralmente é feito com o histórico do paciente [5].

O acidente pode causar três tipos de reações: local, tóxica sistêmica e anafilática. A reação local ocorre quando o animal sofre uma ou poucas ferroadas. Neste caso, se destaca a reação dermatológica, com dor, edema, hiperemia e eritema, que pode persistir por algumas horas ou até mesmo dias. A área da ferroada mostra uma zona central clara, onde se encontra o ferrão, circundado por um halo avermelhado. Cães e gatos costumam apresentar edema nas regiões de face, periorbital e periauricular [2, 4, 6].

A reação tóxica sistêmica é resultado de ataques múltiplos, envolvendo muitas ferroadas. Os sinais clínicos se caracterizam por alterações gastrointestinais, como vômito, diarreia e anorexia, e do sistema cardiovascular, como arritmias cardíacas, taquicardia e hipotensão, além de alterações neurológicas, como hiperexcitabilidade imediata, seguida por convulsões, apatia, depressão do sistema nervoso, nistagmo e coma. Também se observam icterícia, hipertermia, dispneia e taquipneia, fraqueza muscular e mialgia. Ocorrem também alterações do trato urinário, hematúria e hemoglobinúria e insuficiência renal aguda (IRA). A forma aguda pode culminar com o óbito do animal, que ocorre geralmente devido à cardiotoxicidade e edema agudo de pulmão [1, 5]. Tardiamente, o quadro pode evoluir para lesão renal, que ocorre devido ao distúrbio hemolítico intravascular e rabdomiólise, que se soma a insuficiência renal aguda pela ação direta de componentes do veneno nos túbulos e ao quadro tóxico-isquêmico, causando azotemia [2].

Por fim, a reação anafilática ocorre em indivíduos sensíveis que foram picados anteriormente e possuem predisposição genética ao desenvolvimento de alergias ou hipersensibilidades, e pode ser desencadeada por apenas uma ferroada [1, 5]. Nesse caso, os animais podem apresentar letargia, hematúria, ataxia, convulsões, angioedema, prurido e urticária. Em casos mais graves, há edema de glote e broncoespasmo, que pode causar o óbito [5].

No hemograma, é possível observar anemia, com presença de hemólise e trombocitopenia devido à ocorrência de coagulação intravascular disseminada (CID). Observa-se ainda leucocitose por neutrofilia com desvio à esquerda e eosinofilia [5, 6]. Em análises bioquímicas, pode haver aumento sérico de ureia, creatinina e alanina aminotransferase [2, 5]. Na urinálise se manifesta a ocorrência de proteinúria, bilirrubinúria, hematúria e presença de leucócitos [1].

Para tratamento de animais acometidos, uma das primeiras medidas é realizar a remoção do ferrão, que deve ser realizada através de raspagem, para evitar a compressão da glândula [5]. Como ainda não há tratamento específico ou antídoto, o tratamento realizado atualmente é somente sintomático [6]. O tratamento suporte requer fluidoterapia e oxigenioterapia, administração de anti-histamínicos, como a prometazina, e corticosteróides, para auxiliar na hipotensão periférica. Além disso, a utilização de compressas frias pode auxiliar na diminuição da dor e edema no local da picada.As convulsões e a hiperexcitabilidade podem ser controlados com o uso de benzodiazepínicos [1, 6].

Em casos de choque anafilático, a intervenção médico veterinária de urgência pode garantir a sobrevida do animal. O tratamento suporte, suporte cardiorrespiratório e a administração de adrenalina na dose de 0,01 mg/kg via subcutânea para manutenção da pressão arterial e melhora da ventilação alveolar por dilatação dos brônquios devem ser realizados com bastante rapidez [1, 6]. Mesmo com a instituição de protocolos corretos no tratamento, o risco de óbito ainda existe devido à reação tóxica da apitoxina. Dessa forma, o tratamento emergencial pode ser um fator determinante no prognóstico do animal [6].


Referências Bibliográficas:


1. HUEZA, I.M.; DUARTE, M.M.N. Zootoxinas. In: Spinoza, H.S. Toxicologia aplicada à Medicina Veterinária. 2. ed. Barueri: Editora Manole, 2020. p. 148-149.


2. MACHADO, M. et al. Reação tóxica sistêmica causada por picadas de abelhas em cães. Acta Scientiae Veterinariae, v. 46, n. 1, p. 271, 2018.


3. RIBEIRO, P. R. et al. Acute renal failure in a horse following bee sting toxicity. Ciência Rural, v. 50, 2020.


4. SOTO- BLANCO, B.; MELO, M.M. Acidentes por picadas de abelhas. Cadernos Técnicos de Saúde, v. 3, p. 23 – 25, 2018.


5. SOTO- BLANCO, B.; MELO, M.M. Apidismo. Cadernos Técnicos de Veterinária e Zootecnia – Animais Peçonhentos, v. 75, p. 73 – 77, 2014.


6. SOUSA, J. M. S. Toxicose por picada de abelhas em cão. PUBVET, v. 12, p. 130, 2018.


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