Cinomose em cães
Atualizado: 5 de out. de 2021
Jessica Ferreira Campos
Etiologia e aspectos epidemiológicos
O vírus da Cinomose canina, Canine Distemper Virus (CDV), é um Morbillivirus pertencente à família Paramyxoviridae. É um vírus envelopado e possui as glicoproteínas H (hemaglutinina) e F (fusão) que assumem grande importância no desenvolvimento da doença. A primeira é responsável pela ligação do vírus com a membrana da célula hospedeira e a última, pela fusão das membranas virais e celulares. Ambas são antigênicas, induzindo resposta imune do hospedeiro.
Atualmente, estudos sorológicos e moleculares demonstram uma positividade antigênica de 33 a 46% na população canina e uma letalidade de 55%. A doença tem distribuição mundial, afetando principalmente localidades onde há maior população de animais susceptíveis (cães jovens/filhotes e/ou não vacinados), comumente visto em países emergentes, e costuma ocorrer no inverno, quando as temperaturas mais baixas propiciam a propagação viral.
Como principais hospedeiros/reservatórios do CDV, estão inclusos os cães domésticos e canídeos selvagens, como lobos, coiotes, cão-selvagem-africano e dingos australiano. Ocorrem também em procinídeos (guaxinim), mustelídeos (furões e martas), felinos (gatos, tigres, leões, leopardos, guepardos, onças, panteras e jaguares, com infecções variando de assintomáticas a fatais), civetas e hienas.
O período de incubação varia de 1 a 4 semanas e o cão pode eliminar o vírus por até 60 a 90 dias após infecção, através das secreções oculares e nasais, saliva, fezes e urina, principalmente. A transmissão pode se dar por contato direto entre os animais ou suas secreções, por aerossóis e fômites.
Fisiopatogenia e sinais clínicos
O CDV é um microrganismo capaz de infectar três tipos celulares: epitelial, linfóide e neuronal. As primeiras células (macrófagos e células dendríticas) a entrarem em contato com o vírus estão nos alvéolos ao qual o vírus se liga e é capaz de infectá-las.
A fusão de membranas virais e celulares resulta na formação de uma célula multinucleada, sincícia, responsável pela transmissão entre células do CDV. Quando adentra a célula, ele inicia a replicação do seu material genético, o RNA, no citoplasma celular assim como a síntese proteica. A maioria das proteínas virais são rearranjadas no citoplasma da célula hospedeira, formando o virion, que é exocitado para o líquido extracelular, e ao passar a membrana da célula, adquire as glicoproteínas H e F.
Essas células infectadas alcançam os linfonodos, onde linfócitos T e B ativados acabam por se infectar, e nesse caso, a amplificação viral ocorre em larga escala e origina a primeira viremia de 6 a 9 dias pós-infecção, disseminando o CDV para outros órgãos linfóides, como baço, timo e tonsilas, e consequentemente, todo o sistema imune do cão. Ocorre leucopenia na fase aguda da doença, principalmente linfopenia acentuada (acometendo em maior número os linfócitos T), o que expõe o animal a infecções oportunistas secundárias. É comum observar febre transitória de 3 a 6 dias pós-infecção. Após o acometimento do sistema imune, o vírus permanece linfotrópico e induz uma segunda viremia, se espalhando para outros sítios, como fígado, pele, trato gastrointestinal, trato genito-urinário e trato respiratório, onde contamina todas as secreções corporais produzidas pelo hospedeiro e o torna capaz de infectar outros animais.
Após esse estágio, os leucócitos mononucleares atravessam a barreira hemato-encefálica e infectam as células epiteliais e endoteliais, e consequentemente o líquor. A partir daí o vírus se dissemina para o Sistema Nervoso Central (SNC) começando pelos ventrículos, depois o hipocampo, e por fim, o córtex cerebral, infectando astrócitos, oligodendrócitos, células da glia, neurônios, células do plexo coroide e células ependimárias.
Animais imunocompetentes são capazes de combater o CDV na 2ª semana de infecção e debelar a doença, sem evolução dos sinais clínicos. Caso a resposta imune do hospedeiro esteja comprometida, há evolução da sintomatologia, especialmente em animais com menos de 1 ano de idade, a iniciar pela leucopenia, principalmente linfopenia, devido à necrose dos tecidos linfóides e replicação viral em linfócitos T e B. Em seguida, o vírus pode ficar latente na úvea, urotélio, neurônios e queratinócitos, tornando a infecção subclínica em 50-70% dos casos. Os sinais clínicos costumam aparecer de 4 a 10 dias pós-infecção, incluindo febre, prostração, perda de apetite e de peso, descargas óculo-nasais mucopurulentas, tosse, dispneia, pneumonia, diarreia mucóide e/ou sanguinolenta, vômito, hiperqueratose de focinho e coxins e placas eritematosas na face e pescoço.
Os sinais neurológicos podem ser observados a partir de 20 dias pós-infecção, sendo eles andar em círculos, cabeça inclinada, nistágmo, fasciculações, paralisia ou paresia de membros, convulsões e demência. Caso os sinais apareçam mais tardiamente, aproximadamente 40-50 dias pós-infecção, pode ser em decorrência da leucoencefalite desmielinizante que, a princípio, se dá pela replicação viral no tecido nervoso, na forma aguda, e depois por lesão autoimune, na forma crônica, com produção de citocinas pró-inflamatórias e migração de células de defesa para o tecido nervoso, assim que o animal começa a desenvolver imunidade. As lesões ocorrem predominantemente no cerebelo e regiões periventriculares, começando pela substância cinzenta e depois acometendo a substância branca do SNC. Mesmo que o cão se recupere da doença, costumam haver sequelas neurológicas, dentre elas compressão de cabeça, hipermetria, andar compulsivo e ataxia. Um desfecho incomum para o CDV, é a encefalite do cão idoso, que costuma ocorrer em animais com histórico de vacinação em dia, e é caracterizada pelo desarranjo tecidual/celular progressivo da cortical cerebral.
Os achados histopatológicos mais comuns são os corpúsculos de inclusão intracitoplasmáticos e intranucleares eosinofílicos em diversos tecidos.
Diagnóstico
O diagnóstico clínico juntamente com o epidemiológico ainda são as ferramentas mais usadas para elucidar a infecção pelo CDV. Outros métodos diagnósticos disponíveis são
as imunofluorescências diretas e indiretas, e o PCR. No caso, pode-se usar a imunofluorescência indireta nas amostras de líquor para detecção de IgG, com sensibilidade de 64% e especificidade de 100%, e concomitantemente a análise laboratorial do líquor; imunofluorescência indireta de amostras do soro sanguíneo para detecção de IgM, com sensibilidade de 75% e especificidade de 80%; imunocromatografia para pesquisa de antígenos ou anticorpos nos raspados de pele dos coxins e de conjuntiva ocular, evidenciando uma sensibilidade de 23% e 37%, respectivamente, e especificidade para ambos de 100%. O PCR pode ser realizado em qualquer tipo de amostra para pesquisa do antígeno e possui elevada sensibilidade e especificidade, sendo o método diagnóstico mais confiável.
Existe uma maior taxa de positividade das amostras quando sinais clínicos sistêmicos estão presentes (75%), quando comparados à presença de sinais sistêmicos e neurológicos (56%), descargas oculares (55%), sinais neurológicos (41%), sinais gastrointestinais (29%) e sinais respiratórios (25%). Outro fator a ser considerado é o tipo de amostra a ser enviada, pois a maior taxa de positividade é proveniente de secreções oculares (54%), seguida de urina (51%), sangue (46%) para exames sorológicos, sangue (37%) e secreções nasais (33%) para exames moleculares. Amostras fecais e de secreções do trato genital e oral possuem uma taxa de positividade extremamente baixa (entre 11 e 18%). O CDV pode fazer coinfecção com o parvovirus canino em 35% dos casos.
Tratamento e prevenção
O tratamento da doença se baseia na terapia suporte e cuidados paliativos do paciente, incluindo reposição hidroeletrolítica, repouso, terapia anticonvulsivante, limpeza das secreções nasais e oculares, aporte nutricional adequado e utilização de antimicrobianos (na fase linfopênica ou em evidência de infecção secundária), deixando o proprietário ciente do prognóstico reservado à desfavorável da doença e que podem haver sequelas, caso o animal se recupere da infecção. Ainda não existem agentes antivirais de ação comprovada cientificamente e a pouca literatura existente é muito controversa.
A eutanásia deve ser indicada nos casos em: cães com neuropatia que comprometa a qualidade de vida (convulsão não responsiva à medicação, mioclonia severa ou doença incapacitante relacionada à medula espinhal); forma catarral grave ou com piora progressiva; cães provenientes de abrigos ou locais com densidade populacional canina elevada, representando um risco potencial de infecção para os outros animais.
A vacinação dos cães domésticos continua sendo a melhor e mais eficaz forma de prevenção. Mesmo em animais jovens vacinados pode ocorrer manifestação clínica da doença, devido a infecção por amostras selvagens de CDV antes do protocolo vacinal ser estabelecido.
Com relação ao calendário vacinal de filhotes, o protocolo estabelecido são 3 doses de vacina quando o animal tem 6-8, 10-12, 14-16 semanas de idade. Os filhotes costumam produzir anticorpos em quantidade protetora a partir da 1ª dose de vacina. A imunidade da vacina é válida por até 3 anos para o CDV. Contudo, em países emergentes onde a população canina errante é grande e reprodutivamente ativa e existe certa proximidade com a fauna silvestre, é desencorajada e imprudente qualquer frequência vacinal que não seja anual.
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