Doença do Disco Intervertebral em Cães
Júlia Alves Lima – Estudante de Medicina Veterinária na UFMG, membro do GEPA-UFMG e GDIM-UFMG.
A Doença do Disco Intervertebral (DDIV) é uma doença complexa e multifatorial que pode causar alterações no disco intervertebral e compressão medular,desenvolvendo sinais clínicos que variam desde dor até perda de função motora e sensorial (Olby e Tipold, 2021).
Existem relatos de DDIV em cães desde o século 18, mas a doença passou a ser amplamente estudada a partir do trabalho de Hansen (1952), que classificou as alterações de disco vertebral em dois tipos: a Hansen tipo I, que consiste na extrusão discal, uma alteração geralmente súbita, acometendo principalmente cães jovens, e a Hansen tipo II, também conhecida como protusão discal, que decorre de um processo de evolução mais lenta, comum em animais de idade mais avançada. Com a evolução dos estudos e meios diagnósticos, atualmente, existem 5 tipos de classificação da doença do disco intervertebral (Hansen, 1952; Fenn et al., 2020; Da Costa et al., 2020):
Hansen tipo 1 – extrusão de disco intervertebral.
É a forma mais comum de DDIV. Consiste em uma extrusão de núcleo pulposo para o canal vertebral, causada por uma metaplasia condroide. Ocorre geralmente, mas não exclusivamente, em raças controdistróficas, geralmente adultos jovens devido à expressão do retrogene FGF-4. Ocorre degeneração precoce e progressiva levando a desidratação e calcificação progressiva do núcleo pulposo que pode ser observada em radiografias simples (Hansen, 1952; Dickinson e Bannasch, 2020; Fenn et al., 2020).
Esse processo pode proporcionar extrusão aguda do núcleo pulposo por uma ruptura do anel fibroso, levando a seu extravasamento para o canal vertebral, causando compressão medular, laceração do plexo venoso vertebral interno e surgimento dos sinais clínicos (Hansen, 1952; Fenn et al., 2020).
Por mais que a extrusão possa ocorrer em qualquer disco intervertebral ao longo da coluna, é comum que ela ocorra na região toracolombar, especialmente entre T11-L3, principalmente devido à ausência dos ligamentos intercapitais (Fenn et al., 2020).
Por mais que a radiografia simples possa identificar a calcificação de disco intervertebral, ela não é a melhor forma de diagnóstico desse tipo de lesão, por mais que a presença de calcificação de disco nas radiografias seja um fator de risco para possíveis extrusões futuras. Seu diagnóstico pode ser feito por técnicas como a mielografia, mas exames de imagem mais avançados como a tomografia computadorizada e a ressonância magnética permitem também a avaliação de tecidos moles adjacentes à extrusão (Dennison et al., 2010; Fenn et al., 2020; Da Costa et al., 2020).
O tratamento pode ser conservador, porém a abordagem cirúrgica apresenta melhores resultados, visando a remoção de material discal do canal vertebral, principalmente em casos de paralisia. A cirurgia deve ser realizada o mais rápido possível, pois, quanto maior a espera, maior o risco de complicações como mielomalácia e de perda permanente de dor profunda. Mesmo com a demora na intervenção cirúrgica, ela ainda é indicada, uma vez que em sua ausência a chance de retorno da função motora pode chegar a somente 22%. O tratamento clínico conservador pode ser utilizado em situações específicas, envolvendo confinamento, uso de antiinflamatórios não esteroidais (AINES), controle de dor e fisioterapia (Dewey e Da Costa, 2015; Moore et al., 2020; Olby e Tipold, 2021).
Hansen tipo 2 – protusão de disco intervertebral.
A Hansen tipo 2 é o tipo de DDIV que leva à protusão do disco intervertebral por uma metaplasia fibroide. É um processo degenerativo senil mais comum em cães de raças não condrodistróficas a partir de sete anos, sendo lesão de evolução lenta. Há degeneração de núcleo pulposo associada, mas a principal alteração relacionada a esse tipo de DDIV está no anel fibroso, que lentamente se torna mais fino e menos rígido, permitindo prolapso do disco intervertebral para o canal vertebral, desenvolvendo compressão medular e surgimento de sinais clínicos (Hansen et al., 1952; Fenn et al., 2020).
Assim como os outros tipos de discopatias, os sinais clínicos variam de acordo com a localização das lesões, que geralmente são múltiplas, de evolução crônica e progressiva, podendo apresentar dor e sinais neurológicos discretos ou moderados (Dewey e Da Costa, 2015; Fenn et al, 2020).
A tomografia simples, por mais que seja utilizada no diagnóstico de outras discopatias, não é a mais recomendada no diagnóstico desse tipo de DDIV. No estudo de Dennisson e colaboradores (2010), enquanto com a tomografia simples foi possível diagnosticar 21 dos 23 casos de extrusão discal, no caso das protusões, em nenhum dos 16 casos analisados foram visibilizadas alterações (Da Costa et al., 2020; Fenn et al., 2020)
O tratamento geralmente é clínico e conservativo, já que é um processo senil e as lesões são múltiplas, em sua maioria. O confinamento não é indicado, estabelecendo uma rotina de exercícios leves, fisioterapia, acupuntura e glicocorticóidespara reduzir inflamação local e edema vasogênico (Dewey e Da Costa, 2015).
HNPE – Compressão aguda do núcleo pulposo hidratado
Ao contrário dos dois primeiros tipos de DDIV, esse tipo de alteração não é degenerativa. Na compressão aguda no núcleo pulposo hidratado há herniação de volume de núcleo pulposo pouco ou não degenerado para o canal vertebral. Sua patogênese ainda não foi muito bem elucidada, mas acredita-se que uma pequena ruptura no anel fibroso, seguida de alteração na pressão intradiscal discreta ao extravasamento. Também não há evidências de causas diretas como exercício ou trauma que levam ao quadro, que na maioria das vezes ocorre de forma espontânea (Dewey e Da Costa, 2015; Fenn et al., 2020).
A maioria dos casos de HNPE ocorre na coluna vertebral cervical, levando a um quadro agudo e geralmente simétrico de tetraparesia ou tetraplegia. Ao contrário da Hansen tipo I, que geralmente cursa com dor acentuada, a maioria dos animais não apresenta dor ou apenas dor moderada. Esse tipo de DDIV acomete geralmente adultos mais velhos e não há predisposição bem elucidada de raças (Dewey e Da Costa, 2015; Fenn et al., 2020).
O método de diagnóstico ideal é a ressonância magnética, mas estudos recentes mostram que a tomografia computadorizada com contraste tem sensibilidade boa na detecção desses casos, enquanto a tomografia simples não é indicada para o diagnóstico. No caso desse tipo de discopatia, o prognóstico, geralmente é bom, com retorno da função motora na grande maioria dos casos com tratamento clínico. O tratamento cirúrgico também pode ser utilizado, com prognóstico favorável. (Nessler et al., 2018; Da Costa et al., 2020)
ANNPE – Extrusão aguda não-compressiva do núcleo pulposo
Trata-se de extrusão de núcleo pulposo não degenerado levando à contusão medular com mínima compressão, geralmente após impacto, exercício ou trauma. Acredita-se que esse impacto, superior às forças que o anel fibroso suporta fisiologicamente, promove a extrusão do conteúdo do núcleo pulposo, que é rapidamente dissipado ou reabsorvido, levando à lesão contusiva com compressão mínima ou nenhuma. É uma lesão de alta velocidade e baixo volume com quadro geralmente agudo, lateralizado em 90% dos casos, causando paresia ou paralisia não evolutiva nas primeiras 24 horas. A dor pode ser moderada, discreta, ou estar ausente, geralmente apenas no momento do trauma (Dewey e Da Costa, 2015; Fenn et al., 2020).
Assim como na Hansen tipo I, a extrusão aguda não compressiva do núcleo pulposo geralmente ocorre na região de transição toracolombar, gerando sinais neurológicos de neurônio motor superior em membros pélvicos. É importante que esse tipo de discopatia seja diferenciada de outras afecções como a mielopatia isquêmica por embolia fibrocartilaginosa. Seu diagnóstico se dá principalmente através de ressonância magnética, uma vez que a tomografia simples não apresenta resultados satisfatórios de sensibilidade. Seu tratamento é essencialmente clínico, utilizando também fisioterapia para reabilitação (Dewey e Da Costa, 2015; Fenn et al., 2020; Da Costa et al., 2020).
IIVDE – Extrusão do disco intradural ou intramedular
A IIVDE é uma das classificações mais recentes dentro das doenças do disco intervertebral. Diferente das outras, nessa discopatia o conteúdo da extrusão penetra o saco dural, permanecendo no espaço intradural ou ainda, tornando-se intramedular.Possui baixa incidência, com ainda poucos relatos na medicina veterinária. A maioria dos casos se dá na região toracolombar, apesar de existirem relatos na região cervical e lombar (Fenn et al., 2020).
Na maioria dos casos relatados, o material compressivo intradural ou intramedular apresentava sinais de degeneração, por mais que existam relatos de materiais não degenerados. No geral, os animais acometidos por IIVDE apresentaram um quadro superagudo após exercício intenso ou trauma, com progressão do quadro ao longo do tempo. Esse quadro exige atenção especial no diagnóstico, uma vez que o material não se encontra disperso no canal vertebral, e sim no interior do saco dural ou ainda no interior da medula espinhal. Nos estudos, o diagnóstico foi realizado por mielotomografia computadorizada ou ressonância magnética (Fenn et al, 2020).
Por ser uma classificação recente e com poucas informações disponíveis, muitas informações ainda não são bem elucidadas, dificultando o diagnóstico e manejo terapêutico, que é essencialmente clínico, com reabilitação e melhora progressiva (Fenn et al, 2020; Olby e Tipold, 2021).
Conclusões:
Nos diversos tipos de DDIV, os sinais clínicos e a gravidade destes estão relacionados com o local, grau de compressão medular e de raízes nervosas, além da inflamação local. Os sinais podem ser diversos, envolvendo perda de propriocepção, perda de função motora com paralisia ou paresia, ataxia proprioceptiva, e perda de sensibilidade superficial e profunda, normalmente em membros posteriores à lesão. É fundamental que o clínico, ao avaliar um animal com suspeita de discopatia, tenha conhecimento de localização de lesões neurológicas, em especial as medulares, para que os exames corretos sejam solicitados e na posição correta (Dewey e Da Costa, 2015).
O diagnóstico dos diversos tipos de DDIV deve sempre iniciar na coleta de informações em histórico e anamnese, como idade do animal e evolução da lesão. A partir de uma suspeita, métodos de imagem podem ser empregados para confirmar o diagnóstico e tornar a localização mais precisa, facilitando o tratamento clínico conservativo, ou ainda uma intervenção cirúrgica (Dewey e Da Costa, 2015 e Olby e Tipold, 2021).
O termo “Doença do Disco Intervertebral”, na verdade, abrange uma série de doenças com etiologias e patogenias diferentes. Portanto, é importante ressaltar que os estudos referentes às alterações de disco intervertebral estão em constante evolução, fazendo-se necessário que o clínico se atualize frequentemente, de forma a tornar o diagnóstico e as intervenções mais precisas e apuradas (Dewey e Da Costa, 2015 e Olby e Tipold, 2021).
Referências
1. DA COSTA, Ronaldo C., et al. Diagnostic imaging in intervertebral disc disease. Frontiers in veterinary science, 2020, 7: 782.
2. DEWEY, Curtis W.; DA COSTA, Ronaldo C. (ed.). Practical guide to canine and feline neurology. John Wiley & Sons, 2015.
3. DENNISON, Sophie E. et al. Evaluation of different computed tomography techniques and myelography for the diagnosis of acute canine myelopathy. Veterinary Radiology & Ultrasound, v. 51, n. 3, p. 254-258, 2010.
4. DICKINSON, Peter J.; BANNASCH, Danika L. Current
understanding of the genetics of intervertebral disc degeneration. Frontiers in Veterinary Science, 2020, 7.
5. FENN, Joe et al. Classification of intervertebral disc disease. Frontiers in veterinary science, v. 7, p. 707, 2020.
6. HANSEN, Hans-Jörgen. A pathologic-anatomical study on disc degeneration in dog: With special reference to the so-called enchondrosis intervertebralis. Acta Orthopaedica Scandinavica, v. 23, n. sup11, p. 1-130, 1952.
7. MOORE, Sarah A. et al. Current approaches to the management of acute thoracolumbar disc extrusion in dogs. Frontiers in veterinary science, v. 7, p. 610, 2020.
8. NESSLER, Jasmin, et al. Comparison of surgical and conservative treatment of hydrated nucleus pulposus extrusion in dogs. Journal of veterinary internal medicine, 2018, 32.6: 1989-1995.
9. OLBY, Natasha J.; TIPOLD, Andrea. Canine Intervertebral Disc Disease: The Current State of Knowledge. Frontiers in Veterinary Science, 2021, 8: 214.