Transfusão Sanguínea em Cães e Gatos
Atualizado: 17 de set. de 2021
Revisão
Rubens Antônio Carneiro
Introdução
A transfusão de sangue é um tipo de transplante, no qual o sangue (“o órgão”) é transferido de um doador para o paciente, visando corrigir temporariamente uma deficiência ou uma disfunção, para que haja tempo de serem tomadas as medidas específicas contra a causa primária. A transfusão sanguínea deve ser considerada uma terapia emergencial, limitada e transitória e como tal devemos conhecer implicações e complicações associadas visando que um processo de tratamento não possa virar um transtorno, realizar avaliação clínica rigorosa do paciente e da necessidade real de uma transfusão e principalmente avaliar o componente sanguíneo necessário. As transfusões de hemácias na medicina veterinária tornaram-se cada vez mais comuns e são parte integrante do tratamento avançado e salvador de vidas gravemente doentes, mas são importantes também as transfusões de plaquetas, leucócitos, plasma. Situações comuns que envolvem transfusões são anemia com risco de vida, hemorragia aguda ou perda de sangue cirúrgico, hemólise de drogas ou toxinas, doenças imunomediadas, condições não regenerativas graves e isoeritrólise neonatal. Existe uma grande variedade de tipos sanguíneos em animais domésticos e novos antígenos que estão sendo descobertos com frequência crescente. Não é incomum ter pacientes com história prévia de transfusão que requerem transfusões adicionais; atualmente existem testes rápidos e confiáveis para tipagem e comparação de sangue. Existem testes de pré-transfusão que são importantes para ajudar a garantir que uma transfusão de hemácias seja eficaz, minimizando o risco de reações adversas (imediatas ou retardadas). Apesar das transfusões poderem salvar vidas, estão associadas a eventos adversos que podem ser fatais. Assim, o Médico Veterinário deve conhecer os hemocomponentes e suas indicações, bem como os riscos de uma transfusão antes de requisitá-la. Deve-se ressaltar também que a necessidade de realizar a transfusão sanguínea deve ser baseada principalmente na condição clínica do paciente e não somente em valores laboratoriais.
História da transfusão
A transfusão de sangue no mundo, teve dois períodos: um empírico, que vai até 1900, e outro científico, de 1900 em diante. Os relatos a respeito da utilização do sangue como elemento de cura são conhecidos desde a Idade Média, sendo que o primeiro caso relatado de transfusão sanguínea de animal para animal bem sucedida ocorreu em 1665, que foi uma transfusão cão-a-cão. As primeiras transfusões relatadas a seres humanos em 1667 foram realizadas com sangue de cordeiros, bezerros ou cães, embora algumas transfusões desses animais para humanos tivessem levado a reações adversas, como hemoglobinúria grave e maus resultados, outros foram relatados ter sucesso em fornecer benefícios clínicos em anemia.
A primeira notificação de transfusão sanguínea de humano para humano ocorreu em 22 de dezembro de 1818, feita por James Blundell, na Inglaterra, e, como todos os relatos anteriores, o transfundido veio a óbito dois dias depois. A primeira transfusão bem sucedida entre humanos foi de uma mulher que apresentou metrorragia pós-parto e recebeu sangue por três horas, sendo publicada no jornal The Lancet, em 1829, tornando-se a primeira referência a afirmar que transfusão sanguínea salva vidas.
Nos anos 1800, a transfusão humana com sangue de animais era comum, particularmente durante a Guerra Franco-Russa de 1870-1871. Com a ocorrência da Segunda Guerra Mundial houve maior desenvolvimento da hemoterapia, com o aparecimento de bancos de sangue em larga escala.
Os estudos iniciais com os grupos sanguíneos caninos datam de 1910 e, em 1950 foram demonstradas as primeiras técnicas de transfusão e a classificação dos grupos sanguíneos, marcando o início das pesquisas nesse campo da Medicina Veterinária.
Inicialmente, foram caracterizados por letras de A até G. Em 1976, durante o segundo Workshop Internacional de Imunogenética Canina, os grupos sanguíneos caninos foram determinados pela sigla DEA seguida de números, Dog Erythrocyte Antigen.
Tipos de transfusão
Alotransfusão
Transfusão entre indivíduos diferentes, da mesma espécie.
Autotransfusão
A autotransfusão consiste na administração de sangue autólogo para um paciente, o que significa que o sangue foi previamente coletado deste próprio paciente. Oferece a vantagem de reduzir o risco de transmissão de doenças infecciosas e de reações transfusionais.
Xenotransfusão
Transfusão de sangue entre espécies diferentes. Tal procedimento é indicado por alguns autores, administrando sangue de cães para gatos em caráter de urgência. Apesar de haver vários estudos relatando resultados bem-sucedidos quando cães doam sangue para gatos, verificou-se que, gatos receptores desenvolveram anticorpos dentro de 4 a 7 dias após a primeira transfusão, levando a uma reação hemolítica tardia. De fato, repetido a transfusão de sangue de cães após 4 a 6 dias após a primeira transfusão levou à anafilaxia com mortes frequentes. A vida útil média dos eritrócitos transfundidos foi de cerca de 4 dias com sangue canino enquanto alcançou 30 dias com sangue felino.
Grupos sanguíneos
As imunoglobulinas são as proteínas que estão ligadas às células e servem como antígeno receptores nos linfócitos B ou secretados pelas células plasmáticas na forma solúvel como anticorpos. As classes de anticorpos são IgM, IgG, IgA, IgD e IgE, sendo IgM a primeira classe de anticorpos sintetizado e secretado no plasma em uma resposta imune primária. A IgG é produzida em grandes quantidades durante uma segunda resposta imune. Os aloanticorpos eritrocitários são anticorpos IgM, IgG ou IgE e causam reações de hipersensibilidade a produtos sanguíneos.
A membrana dos eritrócitos e coberta com proteínas e carboidratos complexos que podem se comportar como antígenos. Alguns desse sítios são determinados geneticamente e caracterizam os grupos sanguíneos. São constituídos por glicolipídios e glicoproteínas, específicos para cada espécie. Esses anticorpos podem ocorrer naturalmente (denominados aloanticorpos) ou serem induzidos por transfusões prévias (chamados isoanticorpos).
É importante caracterizar especificamente o que são:
Aloantígeno:
Antígeno codificado por formas alternativas de genes, pode ser encontrado em alguns, mas não em todos os indivíduos da mesma espécie. Indivíduo que não apresenta um antígeno pode desenvolver anticorpos contra ele.
Aloanticorpo
Anticorpos contra antígenos expressados em outros indivíduos da mesma espécie. Alguns antígenos eritrocitários são imunógenos mais potentes que outros e a afinidade dos aloanticorpos variam. Aloanticorpos contra eritrócitos podem causar hemaglutinação, hemólise ou opsinização.
Aloanticorpos naturais podem desenvolver reação cruzada.
Aloanticorpos naturais
Ocorrem sem prévia imunização
Aloimunização
Produção de aloanticorpos, podem ser estimulados por transfusão sanguínea, gestação, ou vacinas homólogas
Reação cruzada: epítopo sobre eritrócitos idênticos a epítopos de microrganismos
Grupos sanguíneos caninos
Os tipos sanguíneos são de característica autossômica dominante, por isso há predomínio em cães com proximidade genética (fator racial) ou consanguinidade.
Atualmente, oito antígenos eritrocitários caninos são definidos: AEC 1: 1.1, 1.2 e 1.3, AEC 3, AEC 4, AEC 5, AEC 6, AEC 7, AEC 8. Outros antígenos eritrocitários, como o antígeno Dal, já foram descritos em trabalhos. Entretanto, os grupos AEC 6 e AEC 8 e Dal não têm sido estudados por inexistência de anti-soros para estes antígenos.
O grupo sanguíneo Dal é um antígeno imunogênico dos eritrócitos associada à produção de aloanticorpos anti-Dal após uma primeira transfusão Dal-positiva incompatível. O antígeno Dal foi identificado há uma década após uma incompatibilidade em um Dal-negativo. Os antígenos Dal são raros e, até o momento, foram identificados em dálmatas e em doberman pinschers, mas pouco se sabe sobre a importância clínica dos aloanticorpos anti-Dal.
Excetuando os antígenos do sistema AEC 1 (AEC 1.1, 1.2 e 1.3), que não podem ocorrer simultaneamente na mesma célula por serem alelos do mesmo locus, um cão pode apresentar qualquer combinação dos antígenos eritrocitários reconhecidos na superfície do eritrócito.
O sistema do grupo AEC 1 é composto por três fatores (1.1, 1.2 e 1.3) e quatro fenótipos (1.1, 1.2, 1.3 e negativo), sendo que cada indivíduo exibe somente um dos fenótipos para o grupo AEC 1. Os AEC 1.1 e AEC 1.2 são os que possuem maior potencial para estimulação antigênica.
Como os anticorpos naturais não foram documentados para este grupo, não ocorrem reações numa primeira transfusão de sangue AEC 1 positivo para um receptor AEC 1 negativo. Entretanto, uma vez sensibilizado em transfusão prévia, o paciente pode desenvolver reações transfusionais hemolíticas graves após uma transfusão incompatível subseqüente com sangue AEC 1 positivo.
Ao contrário do AEC 1.1, o antígeno AEC 4 tem alta prevalência e 98% dos cães são relatados serem positivo. Aloanticorpos de ocorrência natural para AECs 3, 5 e 7 ocorrem em cães negativo para esses antígenos e podem causar diminuição na sobrevida das hemácias.
Não há consenso quanto ao doador canino universal. Teoricamente, doador canino universal seria negativo para os antígenos mais comuns como AEC 1.1, AEC 1.2, AEC 3, AEC5 e AEC 7 e positivo para AEC 4.
O grupo AEC 5 possui incidência na população canina dos Estados Unidos de aproximadamente 23% e os anticorpos naturais foram encontrados em cerca de 10% dos cães AEC 5 negativos. Um estudo realizado no Brasil também demonstrou pequena incidência (14% dos cães mestiços e 7% dos Pastores Alemães). Este anticorpo é capaz de causar uma reação transfusional tardia, assim, os cães AEC 5 positivos não são bons doadores.
O AEC 7 é um antígeno não eritrocitário que é adsorvido na superfície celular. Os cães AEC 7 negativos podem ter naturalmente aloanticorpos anti AEC 7, mas sua importância ainda é discutida.
Grupos sanguíneos felinos
Atualmente, o sistema de grupo sanguíneo AB é reconhecido em gatos, compreendendo os tipos A, B e AB. Outros antígenos eritrocitários, que não fazem parte do sistema AB, têm sido investigados e recentemente, foi reportado um antígeno, distinto do grupo AB, com anticorpos clinicamente relevantes, denominado Mik. A diferença entre os tipos sanguíneos do sistema AB reside na natureza molecular desses antígenos eritrocitários. Tais anticorpos são clinicamente importantes pois são responsáveis por reações transfusionais e isoeritrólise neonatal porque podem ser transferidos via colostro à partir de 16 horas pós-nascimento, com surgimento dos anticorpos circulantes nos filhotes com poucas semanas de vida. Assim, os gatos não precisam ser sensibilizados por uma prévia transfusão para desenvolver aloanticorpos: reações adversas podem ocorrer em uma primeira transfusão sanguínea.
Os gatos pertencentes ao grupo B possuem elevados títulos de aloanticorpos anti-A naturais, de forma que se um gato com o grupo sanguíneo B receber sangue do tipo A, esse desenvolverá uma reação de hemólise aguda. Já os gatos tipo A possuem aglutinação fraca dos anticorpos anti-B, de forma que quando um gato tipo A recebe sangue tipo B, ocorre uma reação menor, sendo a meia-vida das hemácias transfundidas de apenas dois dias. Os gatos do tipo AB não possuem anticorpos anti-A ou anti-B, desta forma, a transfusão de sangue tipo A é segura. Os aloanticorpos anti-A presentes no plasma dos gatos tipo B podem causar uma reação se transfundidas em um gato tipo AB.
O tipo A felino é o tipo predominante em todo o mundo, e a incidência varia de acordo com raça e localização geográfica. O tipo B existe em menos de 5% dos gatos, sendo menor que 1% dos gatos mestiço, British Shorthair e Persa.
Não existe um doador de sangue felino universal. A tipagem sanguínea deve ser realizada em todos os doadores e pacientes, sendo além da tipagem sanguínea, a prova cruzada.
Tipagem sanguínea
Através da tipagem sanguínea, é possível prevenir uma incompatibilidade transfusional futura e isoeritrólise neonatal. É baseada em uma reação hemoaglutinação em que o reagente ou anticorpo reage com os antígenos presentes na superfície das hemácias submetidas ao teste utilizando reagentes preparados comercialmente ou através de cartão de tipificação sanguínea comercial. Os cartões têm a vantagem de serem relativamente baratos, de rápida e fácil utilização, além de usar pouca quantidade de amostra.
Reação cruzada
A prova de reação cruzada (Cross-matching) foi primeiramente descrita em 1907, relacionada à medicina humana e modificada várias vezes. A prova de compatibilidade sanguínea inclui uma prova maior, realizada para detectar anticorpos no soro do receptor que possam aglutinar ou provocar lise dos eritrócitos do doador, e uma prova menor, que detecta anticorpos no plasma do doador dirigidos contra os eritrócitos do receptor. Testes de controle para o doador e para o receptor também são realizados.
A incompatibilidade na prova maior tem mais importância porque indica que as células do doador serão destruídas pelos anticorpos presentes no plasma do paciente, causando uma reação transfusional hemolítica aguda. A incompatibilidade na prova menor é menos preocupante pois o volume de plasma é pouco do doador transfundido, particularmente nos concentrados de hemácias, sendo diluído no paciente. A avaliação pode ser feita macroscopicamente, entretanto, todas as reações negativas devem ser confirmadas microscopicamente. Um resultado positivo indica incompatibilidade.
A prova de reação cruzada negativa, tanto na reação maior como na reação menor, não garante uma sobrevida das hemácias transfundidas ao receptor nem elimina completamente o risco de reações pós transfusionais. Reações pós-transfusionais tardias são causadas pela formação de anticorpos logo após a transfusão sanguínea.
Por isso, o teste deve ser realizado em todos os cães que tenham histórico de transfusões prévias obrigatoriamente, mesmo que sejam transfundidos com sangue do mesmo doador.
Em gatos, um teste de reação cruzada entre dois gatos que não tenham histórico de transfusão prévia pode ser incompatível, já que nesta espécie há presença de anticorpos naturais.

Perfil do doador
Cães
O cão doador de sangue deve ter temperamento dócil e estar clinicamente sadio, ter peso igual ou maior que 25 Kg, idade de 1 a 8 anos, desverminado e vacinado, não pode ter histórico de transfusão sanguínea prévia ou ter sido exposto à outro grupo sanguíneo e ter um volume globular igual o maior que 40%.
Alguns autores recomendam que o doador seja macho ou se for fêmea que seja nulípara e castrada, por risco de exposição a outros AEC durante a gestação, mas trabalhos recentes contradizem. Como os tipos sanguíneos AEC 1.1 e 1.2 são considerados os mais importantes com relação à estimulação antigênica e o AEC 7 pode causar reações transfusionais, diminuindo a sobrevida das hemácias quando administrados em cães AEC 7 negativos, os cães AEC 1.1, 1.2 e 7 negativos são os mais indicados.
Exames imprescindíveis
Hemograma e perfil bioquímico, leishmaniose, dirofilariose, erlichiose, babesiose, brucelose.
Em geral um cão pode doar cerca de 20ml de sangue a cada 3-4 semanas. Recomenda-se doar a cada 3 meses.
Gatos
Ambos os sexos, pelo curto, pesar pelo menos 4,5 Kg, idade entre 1 e 8 anos, vacinado e deverminado, viver em ambiente interno, bom temperamento, ter volume globular igual ou maior que 35% e ser negativo para Mycoplasma felis, FIV, FeLV, PIF. Pode doar cerca 5 a 10ml/kg a cada 3-4 meses.
Coleta de sangue
Para a coleta de sangue são importantes os anticoagulantes-conservantes que devem minimizar os efeitos causados pelo armazenamento das células sanguíneas e manter o delicado equilíbrio bioquímico das células. Particularmente, deve-se ter atenção com a habilidade destes conservantes em manter as concentrações de adenosina trifosfato (ATP) e de um importante fosfato orgânico da hemácia, o 2,3-difosfoglicerato (2,3-DPG).
Durante o armazenamento do sangue, os níveis de ATP diminuem tornando a membrana das células rígidas, resultando em rápida remoção destas pelo sistema reticuloendotelial. Os níveis de 2,3-DPG tendem a diminuir com o armazenamento do sangue, levando à menor liberação de oxigênio pela hemoglobina aos tecidos.
É importante lembrar que as soluções anticoagulantes-conservantes não inibem o crescimento de contaminantes microbianos. Assim, a refrigeração dos hemocomponentes e o congelamento do plasma ajudam a inibir o crescimento bacteriano. Os mais utilizados são o CPD (citrato fosfato dextrose) e o CPDA-1 (citrato fosfato dextrose adenina).
O sangue deve ser coletado de um vaso calibroso, de preferência a veia jugular ou a artéria femoral. Após o estabelecimento de fluxo de sangue, a bolsa deve ser movimentada suavemente com o objetivo de homogeneizar o sangue com o anticoagulante sem causar hemólise e para facilitar o fluxo de sangue, a bolsa deve ficar em posição mais baixa que o doador.
Nos cães, deve-se fazer uma contenção satisfatória, sem estressá-los. Em geral, os animais são treinados como doadores, sendo agraciados com brincadeiras e petiscos. A técnica deve ser asséptica e deve durar no máximo 10-15 minutos para evitar contaminação bacteriana. Se a coleta ultrapassar este tempo, aconselha-se o descarte. A bolsa recebe até 500ml de sangue, sendo obrigatório a coleta de pelo menos 300 ml para evitar excesso de anticoagulante.
Os gatos devem ser preferencialmente sedados para coletas de bolsas.
A coleta em bolsas de sangue é considerada sistema fechado.
O sistema fechado não permite que o sangue seja exposto ao ar ou a elementos externos durante a coleta, o processamento ou o armazenamento. Este sistema possui agulhas e uma, duas ou três bolsas satélites integralmente incorporadas.
Um sistema aberto é quando o sangue é coletado por meio de seringas. Nestes casos, o hemoderivado deve ser utilizado de forma obrigatória em até 4 horas após a colheita, se armazenado à temperatura ambiente, ou em até 24 horas, se armazenado entre 1 e 6°C. O sangue pode ser colhido com “scalp” 19 a 20G em seringas contendo anticoagulante, como o CPD, o CPDA-1, na proporção de 1ml de anticoagulante para 9ml de sangue, ou a heparina (5 unidades/ml de sangue)
Neste último caso, o sangue deve ser transfundido imediatamente após a coleta, pois a heparina causa agregação plaquetária, inibe fatores de coagulação e não possui efeitos preservativos de hemácias. Após a coleta do sangue em seringa, este deve ser transferido para uma bolsa estéril ou aplicado diretamente ao animal.
É importante que os gatos sejam repostos com solução fisiológica na mesma quantidade de sangue doada.
Fracionamento
O fracionamento do sangue em seus hemocomponentes facilita o aproveitamento total do sangue. Hemocomponentes e hemoderivados são produtos distintos. Os produtos gerados um a um nos serviços de hemoterapia, a partir do sangue total, por meio de processos físicos (centrifugação, congelamento) são denominados hemocomponentes. Já os produtos obtidos em escala industrial, a partir do fracionamento do plasma por processos físico-químicos são denominados hemoderivados. São considerados hemocomponentes sangue total fresco, sangue total estocado, papa de hemácias, plasma fresco congelado, plasma congelado, crioprecipitado, crioplasma pobre e plasma rico em plaquetas.
Sangue total
O sangue total fresco contém todos os elementos do sangue, já o sangue total estocado fornece hemácias, proteínas plasmáticas e os fatores de coagulação II, VII, IX e X. Com a refrigeração, as plaquetas perdem gradualmente a viabilidade em até 24 horas e ainda a perda de atividade de fatores de coagulação V e VIII e do fator de von Willebrand e demais fatores de coagulação.
O sangue fresco preserva até 8 horas seus componentes. Em geral é usado para reposição de volemia, anemias, coagulopatias, hemorragias.
Pode apresentar maior risco de reação transfusional, causar sobrecarga circulatória em pacientes normovolêmicos (nefropatas), sendo que os níveis de amônia: se elevam no sangue total estocado por mais de 14 dias.
Concentrado de hemácias
É obtido após centrifugação do sangue total em centrífuga refrigerada. O volume globular da bolsa de concentrado de hemácias irá se aproximar de 70 a 80%. A utilização do concentrado de hemácias é indicado para pacientes com deficiências na capacidade de carrear oxigênio, sendo o melhor componente para animais anêmicos com normovolemia, como em casos de perdas sanguíneas crônicas e em pacientes com problemas renais ou cardíacos, que não toleram sobrecarga circulatória. Deve-se infundir 10 ml/kg, infundindo junto com solução fisiológica de Nacl a 0,9%.
Plasma fresco congelado
O plasma fresco congelado (PFC) fornece todos os fatores de coagulação, inclusive os fatores instáveis V e VIII, além de ser fonte de proteínas plasmáticas
É indicado no tratamento ou na prevenção de sangramento em pacientes com deficiências de múltiplos fatores de coagulação, como portadores de doenças hepáticas graves ou de CID. Pode ainda ser indicado em casos de distúrbios hemostáticos do tipo congênitos (doença de von Willebrand, hemofilia) ou do tipo adquiridos (CID, intoxicação por dicumarínicos), associados a sangramento grave, ou quando esses pacientes necessitam de procedimento cirúrgico.
Deve ser armazenado por 1 ano a -18°C por um ano. Após se forma o plasma congelado.
Plasma congelado
O plasma congelado (PC) se obtém com o plasma fresco congelado após um ano de estocagem. Tem validade de 5 anos e apresenta perda das atividades dos fatores V e VIII. Mantem os fatores Vitamina K dependentes, II, VII, IX e X.É usado em Intoxicação por dicumarínicos, na Hemofilia B e Hipoproteinemia.
Em casos de hipovolemia grave a restauração do volume circulatório pode ser realizado com o uso de PFC ou PC, na falta de um expansor plasmático, como salina hipertônica . Os produtos do plasma podem ainda ser utilizados na terapia aguda ou no manejo emergencial de pacientes com perda excessiva de proteína, como nas enteropatias, nefropatias e dermatites exudativas, ou ingestão de quantidade inadequada de proteínas. A reposição de albumina pode ser feita com o uso de plasma, entretanto, isto requer muitas unidades de plasma, com risco de sobrecarga circulatória e solução por curto período de tempo. Para esta situação, o suporte nutricional com dieta enteral ou parenteral é muito mais efetivo. Outra indicação para os produtos do plasma é a reposição de IgG em filhotes que não receberam colostro.
Dose: 10 a 30 ml/Kg, podendo repetir a cada 8 a 12 horas se necessário. Deve ser descongelado em banho-maria com envoltório de plástico para evitar contaminação, já que o frasco é poroso.
Plasma rico em plaquetas
O plasma rico em plaquetas (PRP) é feito a partir de uma unidade de sangue total fresco, que deve ser mantida em temperatura entre 22 e 25°C e processada imediatamente após a coleta para a obtenção de plaquetas viáveis. Para preservar a viabilidade plaquetária, este hemoderivado deve ser conservado em temperaturas entre 20 e 24°C e mantido em movimentação constante durante, no máximo, 5 dias
É indicado no tratamento de trombocitopenias ou trombocitopatias, podendo ser profilática ou terapêutica. A transfusão terapêutica é indicada para reposição de plaquetas em pacientes com trombocitopenia grave, disfunções plaquetárias congênitas ou adquiridas, em pacientes com sinais de sangramento ativo, como petéquias, sufusões, hematoquesia, hematoemese, epistaxe. A transfusão profilática é indicada para prevenção de sangramentos durante procedimentos cirúrgicos em animais com contagem plaquetária inferior a 50.000/µl
O concentrado de plaquetas deve ser utilizado na proporção de 1 componente (CP) para cada 10 Kg, sendo o tempo de administração em torno de 1 hora.
Criopreciptado
É preparado descongelando-se uma unidade de plasma fresco congelado à temperatura de 1°C a 6°C. Depois de descongelado, o plasma sobrenadante é removido deixando-se na bolsa a proteína precipitada e 10-15ml deste plasma. Este material é então recongelado no período de 1 hora e tem validade de 1 ano.
O crioprecipitado contém concentrações altas de fator de von Willebrand, fator VIII, XIII e fibrinogênio. É útil para o tratamento de pacientes com a doença de von Willebrand com perda de sangue ou que serão submetidos a uma cirurgia, hemofilia A, hipofibrinogenemia, CID, sepse e intoxicação por dicumarínicos.
O crioplasma pobre é indicado em casos de hipoproteinemia e para reposição de IgG em recém-nascidos com falha de transferência de imunidade passiva e o crioprecipitado é usado na dose de 12 a 20 ml/Kg.
Decisão de transfundir
A transfusão sanguínea em animais deve ser vista como uma medida terapêutica emergencial e com efeito transitório e limitado pois o tempo de vida das hemácias transfundidas é bastante curto. Em cães, a meia-vida das hemácias, quando houver compatibilidade sanguínea, é de aproximadamente 21 dias. Em felinos, o tempo de vida das hemácias compatíveis transfundidas é de 35 dias
Assim, para a decisão de se realizar a transfusão sanguínea, vários fatores devem ser considerados: necessidade real do procedimento, qual a necessidade específica do paciente, avaliar se o benefício esperado justifica os riscos da transfusão e qual componente sanguíneo será a melhor opção.
Em pacientes com anemia, o objetivo da transfusão sanguínea é aumentar o volume globular (VG) pós-transfusional para 25 a 30% em cães, e para 15 a 20% em gatos. É desnecessário que o VG atinja o valor de referência normal para redução ou ausência dos sinais clínicos. Além disso, um volume normal de hemácias retira o estímulo de produção de células sanguíneas em um paciente com anemia regenerativa.
A quantidade estimada do volume de concentrado de hemácias ou de sangue total necessário é de 10ml/Kg de papa de hemácias ou 20ml/Kg de sangue total para que o hematócrito aumente em 10% pós-trasnfusão no paciente.
Em geral utiliza-se a formula;

Para felinos usa-se 70
Em geral, não se indica o uso de drogas supressoras como antihistamínicos e/ou corticosteróides antes da transfusão sanguínea. Para a administração, deve-se necessariamente utilizar equipos com filtro para remover coágulos e outros materiais particulados, como os agregados plaquetários.
Entretanto, várias soluções intravenosas, como o Ringer-lactato e a dextrose a 5%, interferem com a transfusão de sangue. A solução de Ringer-Lactato contém cálcio suficiente para inativar os quelantes dos sistemas com anticoagulantes-conservantes, o que leva a formação de coágulos na linha de infusão. A dextrose a 5% em água faz com que ocorra agrupamento de hemácias na linha de infusão, provocando aumento de tamanho e hemólise das hemácias.
A transfusão de sangue total e papa de hemácias deve ser administrada em um período máximo de 4 horas, para prevenir o risco de crescimento bacteriano se houver contaminação.
A velocidade na qual o sangue deve ser transfundido depende da situação clínica do paciente. Em casos de hemorragia aguda, as hemácias podem ser transfundidas em velocidade de até 22ml/Kg/hora .
Velocidade inicial: 0,25 a 0,5 mL/Kg por 30 minutos
Hemorragia maciça: 22 mL/Kg/h
Cardiopatas, nefropatas e filhotes 1 mL/Kg/h
Animais normais: 10 a 20 mL/Kg/h
O VG dos pacientes deve ser aferido 1, 24 e 72 horas pós-transfusão. Para avaliação de trombocitopenia, coagulopatias e hipoproteinemia devem ser avaliados 1 hora pós-transfusão contagem plaquetária, perfil de coagulação, aferição de proteínas totais e frações.
Reações transfusionais
Reações Transfusionais Imunológicas agudas
Hemólise imunomediada aguda
As reações transfusionais imunológicas imediatas ocorrem nas primeiras 48 horas da administração de um hemocomponente. A hemólise imunomediada aguda é a reação de maior risco para o paciente e ocorre devido à incompatibilidade entre doador e receptor ou à pré-sensibilização por transfusão anterior ou prenhez. A hemólise imunomediada aguda é uma reação de hipersensibilidade tipo II.
Imunoglobulinas pré-formadas das classes G e M se ligam aos antígenos de membrana eritrocitária formando complexos imunes. Estes ativam o sistema complemento pela via clássica até a formação do Complexo de Ataque à Membrana (MAC) levando à hemólise intravascular. Em meio a todos os processos, anafilatoxinas C3a e C5a são liberadas na circulação promovendo a liberação de diversos mediadores inflamatórios e substâncias tromboplásticas que são responsáveis, respectivamente, pela hipotensão e pela CID observadas nesses pacientes.
O paciente pode apresentar febre e inquietação, hemoglobinemia, hemoglobinúria, vasoconstrição, isquemia renal e insuficiência renal aguda, que a depender da gravidade do quadro, pode resultar em óbito.
Como terapia, deve-se Interromper imediatamente a transfusão, corticoides e fluidoterapia.
Reações de hipersensibilidade aguda
São classificadas como hipersensibilidades do tipo I e se iniciam nos primeiros 45 minutos da transfusão, sendo observadas alterações principalmente na pele, sistema respiratório, gastrintestinal e cardiovascular.
O tratamento é interromper a transfusão e aplicação de antihistaminicos.
Injúria pulmonar aguda relacionada à transfusão (TRALI)
A injúria pulmonar aguda relacionada à transfusão, ou transfusion-related acute lung injury (TRALI), caracteriza-se por edema pulmonar não cardiogênico, que ocorre até seis horas após o término da transfusão. A TRALI imunomediada ocorre pela formação de agregados celulares compostos por granulócitos do receptor e anticorpos leucocitários do doador. Estes agregados ficam retidos na microvasculatura pulmonar, de tal maneira que, os neutrófilos quando ativados por estímulo dos anticorpos, liberam espécies reativas de oxigênio e enzimas tóxicas que lesionam células endoteliais dos capilares pulmonares. Segue-se então, o aumento da permeabilidade vascular e a exsudação de fluido e proteína para dentro dos alvéolos, o que resulta em edema pulmonar.
A TRALI não imunomediada pode ser originada a partir de quadros clínicos como (sepse, cirurgia, trauma), que aumentam o número de neutrófilos circulantes sequestrando-os nos tecidos pulmonares e ativando-os, ocasionando lesão ao endotélio pulmonar e tornando-o susceptível às citocinas e aos lipídeos presentes em produtos sanguíneos estocados.
O diagnóstico é basicamente clínico, pois não há teste específico para TRALI. As alterações apresentadas pelo paciente consistem em dispneia, hipoxemia, edema pulmonar, febre, hipotensão, cianose e taquicardia. Como estes sinais podem mimetizar a síndrome da angústia respiratória aguda, a doença cardíaca e a sobrecarga circulatória, é provável que a TRALI seja confundida ou subdiagnosticada. tratamento de suporte consiste em oxigenoterapia e ventilação mecânica se necessário. O uso de vasopressores, como a adrenalina, e de fluidos pode ser indicado para o tratamento da hipotensão, já o uso de diurético é controverso.
Febre não hemolítica
A febre não hemolítica (FNH) é definida como o aumento da temperatura corpórea em mais de 1C durante ou em algumas horas após a transfusão sem outra causa óbvia.
O tratamento é suporte.
Reações Transfusionais Imunológicas Tardias
São aquelas que se iniciam após 48 horas da transfusão de um hemocomponente e ocorrem devido à resposta imune de memória induzida por transfusão prévia. Estas reações geralmente não são previstas com teste de reação cruzada.
Hemólise imunomediada tardia
A hemólise imunomediada tardia ocorre em pacientes que foram pré sensibilizados e é caracterizada por hemólise entre três e sete dias após a transfusão sanguínea, sendo observada redução do VG do paciente.
Púrpura pós-transfusional
A púrpura pós-transfusional é considerada reação imunomediada tardia resultando em trombocitopenia grave observada de sete a quatorze dias após a transfusão. Esta alteração geralmente é autolimitante, podendo ser realizada terapia preconizada para trombocitopenia imunomediada.
Reações Transfusionais Não Imunológicas Imediatas
Hemólise pré-transfusional
A hemólise pré-transfusional não possui base imunomediada, ocorrendo por lesões osmóticas, mecânicas ou térmicas nos eritrócitos durante os processos de coleta, armazenamento ou administração do sangue.
Contaminação bacteriana
A contaminação de produtos sanguíneos pode ter origem endógena ou exógena. As causas endógenas estão relacionadas ao doador, que pode apresentar bacteremia subclínica ou infecção preexistente. As causas exógenas estão relacionadas à introdução de microorganismos da pele do doador no interior da bolsa durante a venopunção. A antissepsia bem feita minimiza este processo.
Os sinais clínicos da transfusão de sangue contaminado ocorrem em poucas horas e incluem febre, vômito, hemólise, coagulação intravascular disseminada e colapso hemodinâmico.
Sobrecarga circulatória
A sobrecarga circulatória pode ser resultante da administração de sangue total a pacientes normovolêmicos, da administração rápida de grande volume de um hemocomponente e pode ocorrer tambémem pacientes com comprometimento cardiovascular, renal ou pulmonar
Toxicidade por citrato